Enfermagem e Suas Teorias (Blog N. 393) Parceria: O Porta-Voz e Painel do Coronel

sábado, 11 de fevereiro de 2012


HOMEOSTASIA E REOSTASIA
Depto. Fisiologia e Farmacologia
CCB/UFPE

Uma das coisas que mais caracteriza um ser vivo é sua interação com o meio que o cerca. Pelo menos em boa parte de sua vida, os organismos vivem às custas de uma troca de energia, matéria e informação com o ambiente (fig.01).
A energia é essencial para o funcionamento do organismo. O animal utiliza a energia dos alimentos oxidando-os. Uma parte dessa energia é acumulada na forma de ligações químicas e outra parte é utilizada para produzir calor, movimento ou novas reações químicas. A matéria, formadora do corpo do animal, é continuamente perdida pelo desgaste ou para fornecer energia. Dessa forma, a matéria é continuamente absorvida, transformada e devolvida ao ambiente em uma forma mais desorganizada como as fezes. Outro processo importante é a captação de informação do ambiente. Essa informação direciona todo o comportamento e o amadurecimento dos organismos em todos os níveis do reino animal e é processada na forma de códigos elétricos ou químicos. Em todos os níveis de organização da matéria viva podemos encontrar esse fluxo de informação. Dessa forma, podemos considerar os animais como centros transformadores que continuamente trocam com o ambiente, matéria, energia e informação e que dependem desse fluxo para se manterem vivos. O biologista Ludwig von Bertalanffy, na primeira metade do século XX, estudou esse fenômeno e descreveu os organismos vivos como "Sistemas Abertos" (fig.02), pois estão em constante troca de elementos com o ambiente externo (Capra, 1996; Douglas, 1999):
O organismo não é um sistema estático, fechado ao mundo exterior e contendo sempre componentes idênticos; é um sistema aberto (quase) estacionário, onde matérias ingressam continuamente vindas do meio ambiente exterior, e neste são deixadas matérias provenientes do organismo (Bertalanffy, 1938).

ESTABILIDADE E MUTABILIDADE

À primeira vista, um organismo funcionando como um sistema aberto pode parecer deveras susceptível a flutuações ambientais e se tornar instável. Na verdade, não é bem assim. Nos seres vivos os conceitos de estabilidade e mudança assumem um papel de destaque que é essencial para a manutenção da vida. Se não houvesse estabilidade não haveria evolução pois as características de cada geração não passariam à descendência e seriam perdidas. Nossa própria massa seria extremamente volátil e não haveria garantia da manutenção das características bioquímicas essenciais à vida. Os organismos se mantém vivos em função de sua capacidade de estabilizar sua organização interna, evitando a desintegração em um estado cada vez mais desorganizado. Schrödinger (1947), descreveu esse fenômeno como a capacidade de manter baixa entropia (desordem) pela retirada de entropia negativa (ordem) do ambiente. Em outras palavras, os seres vivos se mantêm estavelmente organizados à custa da desorganização do ambiente.
A importância dessa estabilidade para a manutenção da vida foi destacada por Claude Bernard (1872) em sua afirmativa: "A constância do meio interno é a condição da vida livre" (Randall et al., 2000; Ashby, 1970).
Por outro lado, a manutenção da "estabilidade" em meio a um ambiente em constante mudança, exige mecanismos eficientes para superar as dificuldades e regular os fluxos de entrada e saída do organismo vivo. Podemos representar as dificuldades envolvidas nesse processo imaginando uma pessoa que procura se manter de pé em cima de uma prancha que flutua sobre uma superfície líquida em permanente mudança Figura 03.

Para se manter equilibrado, esse indivíduo deve realizar ajustes posturais para compensar um ambiente flutuante. Dessa forma os organismos vivos mantêm a estabilidade às custas de mutabilidade. Na verdade, apesar da importância da estabilidade, a mutabilidade é essencial para os organismos. Sem a nossa capacidade de mudar seria impossível a adaptação a ambientes diversos, assim ela aparece sob as mais diversas formas: alterações na temperatura do corpo, movimento do sangue, processos digestivos, crescimento, puberdade, velhice, aprendizado, aclimatação etc.
Podemos destacar dois tipos principais de alterações no organismo. As que buscam manter os parâmetros orgânicos do animal em um nível estável, o nível de referência, e as que buscam alterar o nível de referência. As primeiras correspondem às regulações que o organismo lança mão para compensar flutuações aleatórias do ambiente e que, por isso, não podem antecipar. A capacidade e os mecanismos que possibilitam essas mudanças reativas foram denominados de homeostasia por Cannon (Langley, 1980). O segundo tipo corresponde àquelas que ocorrem de forma não imediatamente relacionadas a algum evento e se instalam alterando o nível de referência de algum parâmetro orgânico para possibilitar a adaptação do organismo diante de alterações de seu ambiente interno ou externo. Elas podem aparecer de forma periódica ou não. Uma boa denominação para esse fenômeno é reostasia (Mrosovsky, 1990). Dessa forma podemos dizer que os animais apresentam a fisiologia da estabilidade (Homeostasia) e a fisiologia da mudança (Reostasia).
Na verdade, os dois processos existem para manter os sistemas vivos em um estado definido por Bertalanffy como "Fliessgleichgewicht" ou "Equilíbrio fluente". Em cibernética é definido como "Estado estacionário afastado do equilíbrio". Além desses dois tipos de flutuação ainda podemos encontrar componentes caóticos que são comuns nos sistemas vivos (Glass e Mackey, 1997).
TERMODINÂMICA E VIDA
Essas características peculiares dos seres vivos tem chamado a atenção dos físicos em função da aparente violação das Leis da Termodinâmica:
A luta generalizada pela existência de seres animados não é portanto a luta pela meteria-prima – esta, para os organismos, corresponde ao ar, a água, o solo, todos presentes fartamente – nem é tampouco a luta pela energia que existe em abundância em qualquer corpo na forma de calor (embora, infelizmente, não transformável), mas é a luta pela entropia, que se torna disponível através da transição de energia do sol quente para a terra fria (Boltzmann, 1886).
Portanto, o estratagema que o organismo usa para se manter estacionário em um nível bastante alto de ordenação (= nível bastante baixo de entropia) na verdade consiste em continuamente sugar ordenação do seu ambiente... as plantas...é claro, conseguem seu suprimento mais poderoso de entropia negativa na luz solar (Schrödinger, 1944)
O aparente conflito pode ser resumido na pergunta: como a vida apresenta um padrão cada vez mais organizado em meio a um mundo não vivo que flui em direção ao CAOS? A primeira Lei diz que a energia não pode ser criada nem destruída e que a energia total em um sistema fechado ou isolado permanece a mesma. A segunda Lei afirma que qualquer processo real somente pode prosseguir em uma direção que resulte em aumento da entropia (desordem). Segundo Schrödinger (1947), a vida exibe dois processos para reduzir sua entropia. Os seres vivos geram ORDEM a partir de DESORDEM e geram ORDEM a partir de estados já ORGANIZADOS (fig.04).
A solução da questão está no fato de que os organismos vivos não são sistemas fechados mas sim abertos, portanto não obedecem às Leis da Termodinâmica na forma que foram expostas, limitadas a sistemas fechados (Schneider e Kay, 1995).

A FISIOLOGIA DA ESTABILIDADE – HOMEOSTASIA

Os primeiros registros de que o organismo possui uma forma de ajuste para manter sua estabilidade se devem a Hipócrates. Ele acreditava que as doenças eram curadas por poderes naturais, isto é, dentro dos organismos existiriam mecanismos que tenderiam a ajustar as funções quando desviadas de seu estado natural. Em 1885, o fisiologista belga Frederico declarou que o ser vivo é uma organização em que cada influência perturbadora induz, de per si, o incremento de uma atividade compensadora para neutralizar o distúrbio. Apesar de vários pesquisadores possuírem essas idéias, é mais amplamente conhecido o trabalho do fisiologista francês Claude Bernard que, em 1865, publicou o livro intitulado "Introduction to the Study of Experimental Medicine". Nesse trabalho ele lança a idéia de que os organismos possuem um ambiente interno que deve ser mantido constante. Bem depois de Claude Bernard, um fisiologista americano chamado Walter Cannon publicou um artigo intitulado "Organization for Physiological Homeostasis"., onde aprofunda as idéias de seus predecessores e propõe o termo Homeostasia para expressar essa característica essencial dos organismos vivos (Langley, 1980).
Podemos recorrer à engenharia para representar uma função orgânica a ser mantida estável a representa-la em um modelo hidráulico (fig.05). Neste modelo, o nível da água no tanque dependerá essencialmente da relação entre a entrada e a saída. Como esses parâmetros não estão controlados, o nível da água é instável pois pode ser facilmente afetado por alterações na entrada e na saída. Para se atingir o equilíbrio característico dos organismos vivos, a entrada e a saída do sistema devem ser, necessariamente, controladas. Podemos representar esse controle acrescentando duas bóias ao nosso modelo (fig.06).

Agora o nível do líquido no tanque se torna bem mais estável. As bois funcionam como sensores. Se houver aumento no fluxo de entrada, o nível tenderá a subir, o que provocará redução do fluxo de entrada por B1 e aumento da saída por B2 até que o nível correto seja atingido. Os sistemas que funcionam como o da figura 05 são chamados de SISTEMAS NÃO CONTROLADOS e os que funcionam como os da figura 06 de SISTEMAS CONTROLADOS. A cibernética representa os sistemas em diagramas como o da Figura 07:
 
Na figura 07A, o sistema é não-controlado. Existe uma função que representa a relação entre a entrada e a saída. Essa relação é a função de transferência Ft (Douglas, 2000).

A função de transferência representa os processos que existem dentro do sistema e que produzem uma determinada saída (S) a partir de uma entrada (E). No caso 7A, alterações na entrada ou na saída não são acompanhadas por alterações compensatórias no sistema. Na figura 07B, o trabalho do sistema é acompanhado por um sensor que compara o parâmetro a ser regulado com um valor de referência. A partir dessa comparação, podem ser ativados sinais de ajuste em função da discrepância entre o sensor e a referência (Cabanac et al, 2000).
Quando o sinal de ajuste atua sobre o subsistema de entrada, ou seja, regula um mecanismo anterior ao sensor, chamamos esse processo de retroalimentação. Quando o sinal de ajuste atua sobre o subsistema de saída, ou seja, regula um mecanismo posterior ao sensor, chamamos esse processo de anteroalimentação. Tanto o retroalimentação quanto o anteroalimentação podem se apresentar como negativas ou positivas. O retroalimentação negativa e o anteroalimentação positiva são essenciais à manutenção da estabilidade do sistema. O processo positiva produz no subsistema um efeito diretamente proporcional à diferença entre o sensor e o nível de referência enquanto o processo negativa produz um efeito inversamente proporcional.
Imaginemos o sistema de regulação de água no organismo humano. A aquisição e a perda de água regulam o nível do líquido no corpo. Se esse nível estiver abaixo do normal (referência), o sistema reduz a perda e aumenta a aquisição (fig.08).

Na figura 08, o sinal que controla a aquisição e preservação trata-se de um retroalimentação negativa, pois se o nível da água desce, ela provoca um aumento no fluxo de entrada e se o nível da água sobe ela provoca a redução desse fluxo. O sinal que controla a perda de água trata-se de um anteroalimentação positiva pois nas mesmas situações, ele provoca respectivamente a redução do fluxo e o aumento do fluxo de perda de água. Tanto o retroalimentação negativa quanto o anteroalimentação positiva são essenciais para a manutenção de um estado estável.
Alguns pesquisadores acham útil a distinção entre dois tipos de sistemas controlados. Aqueles com regulação de variável e aqueles commodulação (ou controle) de variável. A regulação ocorre nos parâmetros de variáveis intensivas, aqueles que possuem sensores participando diretamente do processo regulatório como a temperatura corporal (termoreceptores), pressão arterial (baroreceptores) e concentração de substâncias (quimioreceptores). As variáveis moduladas (controladas) são representadas pelas funções fisiológicas como a produção de calor, o débito cardíaco e a ventilação pulmonar.
A temperatura é regulada através da modulação da produção de calor, das perdas evaporativa e radiativa e do comportamento. A pressão sanguínea é regulada através da modulação do débito cardíaco e da resistência vascular. As concentrações de CO2 e de O2 no sangue são reguladas através da modulação da ventilação pulmonar. Do ponto de vista matemático, os parâmetros regulados são variáveis e os parâmetros modulados são funções. (Cabanac et al., 2000).

FISIOLOGIA DA MUDANÇA – REOSTASIA

Reostasia pode ser definida como a condição em que: a qualquer momento o nível de um parâmetro é mantido próximo à referência por mecanismos homeostáticos mas, ao longo do tempo, o nível de referência é alterado (Mrosovsky, 1990 ). Dessa forma, podemos admitir que enquanto a homeostasia é um fenômeno observado em uma escala de tempo de curto prazo, a reostasia se refere a fenômenos que são observados em maiores escalas de tempo, ou seja, através de séries temporais. A figura 09 representa os tipos de alteração observados ao longo do tempo em uma série temporal. Podemos identificar pelo menos quatro tipos de alteração nesse gráfico: uma tendência, variações não periódicas, variações periódicas e flutuações aleatórias de curto prazo. As flutuações aleatórias de curto prazo representam fuga do parâmetro em relação ao nível de referência e são ajustados por mecanismos homeostáticos mas a tendência, as variações não-periódicas e as variações periódicas representam alterações no próprio nível de referência.

Mrosovsky apresenta dois tipos de reostasia, a reativa e a programada. A reostasia reativa se refere àquelas alterações do nível de referência ocorridas como resposta a algum estímulo. Dessa forma ela ocorre apenas na dependência da presença do estímulo. O exemplo mais evidente de reostasia reativa é a febre. O nível de referência de temperatura do corpo pode ser alterado pela presença de agentes pirogênicos em circulação. Dessa forma os processos homeostáticos passam a tentar manter a temperatura do corpo em um nível mais elevado. Esse fenômeno pode ser observado mesmo em animais ectotérmicos. Após uma injeção de patógenos, a iguana do deserto,Dipsosaurus dorsalis, tendo acesso a alguma fornte de calor, se posiciona de forma a absorver mais calor e aumentar a temperatura do corpo. Ela ajusta seu comportamento para se tornar febril.
A reostasia programada se refere àquelas alterações que são obrigatórias em certas fases do ciclo de vida. Podemos citar como exemplos a elevação da temperatura do corpo da mulher durante a fase lútea do ciclo menstrual, a redução do nível de CO2 (PCO2) alveolar em mulheres grávidas e o estado de consciência ao longo do ciclo de sono e vigília. Essas alterações programadas são essenciais por permitir o ajuste da fisiologia dos organismos a condições específicas que venham sendo seletivamente importantes ao longo da história evolutiva da espécie. Se essas condições se expressam de forma periódica, torna-se possível e adaptativamente vantajoso para o organismo ajustar sua fisiologia antecipadamente em relação a essas condições específicas. Assim, muitos parâmetros fisiológicos apresentam caráter recorrente e com períodos que se expressam de forma claramente antecipativa em relação às alterações periódicas de seu ambiente. Esse tipo de alteração é tão importante que virtualmente todos os organismos estudados apresentam esses fenômenos conhecidos como ritmos biológicos. É possível, portanto, deduzir que os organismos que possuíam essa capacidade de antecipação sobreviveram e transmitiram essa característica a sua descendência (Menna-Barreto e Marques, 1997, 2002).

BIBLIOGRAFIA

ASHBY, W. ROSS (1970). Introdução à Cibernética. Editora Perspectiva. São Paulo
CAPRA, FRITJOF (1996). A Teia da Vida. Editora Cultrix. São Paulo.
CABANAC, MICHEL e RUSSEK, MAURICIO (2000). Regulated Biological Systems. Journal of Biological Systems, v. 8, n.2,  p. 141-149.
DOUGLAS, CARLOS ROBERTO (2000). Tratado de Fisiologia Aplicada às Ciências da Saúde. Robe Editorial. São Paulo.
GLASS, LEON e MACKEY, MICHAEL C. (1997). Dos Relógios ao Caos. EDUSP. São Paulo
LANGLEY, L. L. (1980). Homeostasis. Editora Alhambra. Madrid.
MENNA-BARRETO, L. e MARQUES, N. (1997). Cronobiologia: Princípios e Aplicações. EDUSP, São Paulo. 1a. edição.
MENNA-BARRETO, L. e MARQUES, N. (2002) O tempo dentro da vida, além da vida dentro do tempo. Ciência e Cultura, outubro 2002. p. 44-46.
MROSOVSKY, N. (1990). Rheostasis: The Physiology of Change. Oxford University Press. New York.
SCHNEIDER, ERIC D. e KAY, JAMES J. (1995). Ordem a Partir da Desordem: A Termodinâmica da Complexidade Biológica. In: Michael P. Murphy e Luke A. J.
O’Neill (Org.). O que é a vida: 50 anos depois. UNESP. São Paulo.
SCRÖDINGER, ERWIN (1947). O Que é a Vida?. Editora Fragmentos. Lisboa
RANDALL, DAVID; BURGGREN, WARREN e FRENCH, KATHLEEN (2000). Fisiologia Animal. Guanabara Koogan. Rio de Janeiro.

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